quinta-feira, 4 de julho de 2019

Cultura e religião: qual seu envolvimento



O mundo em que  vivemos não é mais como aquele onde viveram nossos antepassados, nossos avós, as gerações que sempre nasceram e se criaram cercados dos símbolos, dos sinais e das afirmações da fé cristã e – mais do que isso – católica.  Hoje vivemos num mundo onde a religião muitas vezes desempenha mais o papel de cultura e força civilizatória do que propriamente de credo de adesão que configura a vida. Mais ainda: vivemos num mundo  plural em todos os aspectos e termos.  Desejamos dizer com isso que a pluralidade advinda da globalização afeta não apenas os terrenos econômico e social, mas igualmente os  políticos, culturais e também religiosos. 
Em nossos dias as pessoas nascem e crescem no meio de um mundo onde se cruzam, dialogam e interagem de um lado o ateísmo , a descrença e/ou a indiferença religiosa, e de outro lado várias religiões, antigas e novas que se entrecruzam e se interpelam reciprocamente.  O Cristianismo histórico – e, portanto, também e não menos a fé e a religião em geral -  se encontram  no epicentro desta interpelação e desta pluralidade.
Hoje assistimos à privatização da vida religiosa, que vai de par com a autonomia do homem moderno , diferente da religiosidade que regia o mundo teocêntrico medieval..  Cada um compõe sua própria “receita” religiosa e o campo religioso passa a se assemelhar a um grande supermercado assim como também a um “lugar de trânsito” onde se entra e se sai.  A modernidade não liquidou com a religião, mas esta ressurge com nova força e nova forma, não mais institucionalizada como antes, mas sim plural e multiforme, selvagem e mesmo anárquica, sem condições de voltar a sua configuração  pré-moderna.
O ser humano que viveu a crise da modernidade, ou que nasceu em meio ao seu clímax, e já nada em águas pós-modernas, diferentemente do adepto da religião institucional, que adere a uma só religião e nela permanece; ou mesmo do ateu ou agnóstico, que nega a pertença e a crença em qualquer religião é como um “peregrino” que caminha por entre os meandros das diferentes propostas que compõem o campo religioso, não tendo problemas em passar de uma para outra, ou mesmo de fazer sua própria composição religiosa com elementos de uma e outra proposta simultaneamente.
A experiência religiosa hoje, portanto, é constantemente desafiada a inculturar-se incessantemente, ou seja, a entrar incessantemente e a dizer-se  dentro de uma nova matriz cultural.  Nessa tentativa,  defronta-se hoje com uma outra face que convive lado a lado com  a da secularidade moderna, geradora da suspeita e do ateísmo, onde a Transcendência está submetida à constante e incessante crítica da razão e da lógica iluminista.  E esta outra face é a face da pluralidade .  Face esta que, por sua vez, implicará na existência de  uma interface: a das diferentes tentativas do diálogo inter-religioso , da prática plurireligiosa e da religião do outro como condição de possibilidade de viver mais profunda e radicalmente a própria fé.
A religião nos parece ser a mais complexa e conflitada das nossas manifestações culturais. Mas, não é bem assim.
No conjunto das medidas tomadas pela organização humana, visando à preservação dos seus grupos, o sentimento de pertinência do Homem aos deuses levou-o a cultuá-los num sistema marcado pela rigidez e pela precisão. A intenção de angariar simpatia desses seres superiores que teriam poder de determinação no destino humano, fez criar sistemas especiais que permitissem a comunicação do grupo com os deuses, por intermédio de algum ou alguns dos seus membros, se valendo da simbologia dos ritos.
Acredita-se que a preservação desse costume se faz para o bem das gerações passadas, presentes e futuras. O fenômeno da atividade religiosa se dá em separado das demais manifestações, em respeito a distancia existente entre o Homem e os seus criadores. Aliás, a palavra “santo” significa: separado. Portanto, mesmo cercada de todo o cuidado pela sua importância primordial, a religião é parte integrante da cultura de um grupo, e não a cultura dele.
Cultura pode ser compreendida como o modo com que os grupos criam suas soluções às próprias necessidades e constroem símbolos, tendo em vista a auto-preservação. Suas crenças, língua, representações, códigos, costumes, instituições, religião, arte, etc. conferem uma identidade àquele grupo e se relacionam com a produção, perpetuação e transmissão do saber, à qual todos indistintamente devem se enquadrar. Um sistema de símbolos compartilhados com que se interpreta a realidade e dá sentido a existência. Cultura é criação e responde ao dinamismo humano registrado pela história. Portanto, quando relacionamos ambos os conceitos ─ religião e cultura ─ primeiro, devemos observá-los separadamente.
Depois que o judaísmo projetou-se no ambiente religioso mundial, uma grande transformação se deu nesse contexto. O conjunto das divindades concebidas na Antiguidade, masculinas e femininas, especialmente, foi expurgado do cenário do misticismo ocidental devido ao monoteísmo judeu patriarcal. O deus dos judeus era um deus que reivindicava a criação da Humanidade e se colocava acima de todos os deuses se dizendo um deus ciumento.
O povo judeu havia se organizado de um modo diferente, ou seja, vivia debaixo de um rigoroso sistema político-religioso estruturado sob um arcabouço legal, alegadamente de origem divina e doado diretamente pelo seu deus ciumento que exigia o severo cumprimento das suas leis. O judaísmo não admitia a alternância do homem entre o momento sagrado e o momento profano, como ocorre nas religiões. Nele, o homem religioso não se aparta do compromisso com o seu deus.
A cultura judaica, no seu modelo de crença organizada, distingue-se, então, em importância das outras culturas por estar amarrada firmemente num pacote de cunho religioso, no qual a autoridade jurídica e religiosa era unificada e detinha o poder civil. Diferentemente, nas culturas onde a simples religião era praticada, esta, continuava submetida ao poder civil como as demais manifestações. Eis a diferença fundamental entre religião e cultura religiosa. Assim sendo, fica problemático classificar o judaísmo como religião. É uma cultura religiosa, certamente.
A cultura religiosa não é amistosa porque a sua natureza não permite. Quando ela se estabelece, a primeira providência é se livrar das religiões e dos adversários profanos porque as leis divinas têm validade eterna e exigem zelo. Por causa disso, os judeus formavam um grupo fechado, refratário a influências, que vivia nas mesmas cidades dos outros grupos, para os quais o momento sagrado e o profano eram claramente perceptíveis em suas vidas. Por isso o judaísmo era um estilo de vida que não se envolvia com os demais.
O modelo judeu foi copiado pelos gregos em função de uma disputa pela hegemonia cultural no mundo antigo. Dele surgiu o cristianismo e, do cristianismo, o islamismo. A conclusão é que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo nunca foram simples religiões vitoriosas, como se pensa. São culturas religiosas e nasceram de um austero projeto político-religioso a se executar. Com efeito, é inadequado pensar-se em suas modernizações, pois o conceito de legalidade que os inspirou é eterno. As leis divinas mudarão jamais.
As culturas religiosas podem comportar diversas religiões derivadas de si mesmas, vários filhotes, por assim dizer. O cristianismo é o seu maior exemplo nesse sentido.
A distinção entre religião e cultura religiosa se faz necessária, inclusive, porque o saldo negativo que esta última deixou na história da Humanidade deve ser creditado a quem de direito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário