O mundo em que vivemos não é mais como aquele
onde viveram nossos antepassados, nossos avós, as gerações que sempre nasceram
e se criaram cercados dos símbolos, dos sinais e das afirmações da fé cristã e
– mais do que isso – católica. Hoje vivemos num mundo onde a religião
muitas vezes desempenha mais o papel de cultura e força civilizatória do que
propriamente de credo de adesão que configura a vida. Mais ainda: vivemos num
mundo plural em todos os aspectos e termos. Desejamos dizer com
isso que a pluralidade advinda da globalização afeta não apenas os terrenos
econômico e social, mas igualmente os políticos, culturais e também
religiosos.
Em nossos dias as pessoas nascem e crescem no meio
de um mundo onde se cruzam, dialogam e interagem de um lado o ateísmo , a
descrença e/ou a indiferença religiosa, e de outro lado várias religiões,
antigas e novas que se entrecruzam e se interpelam reciprocamente. O
Cristianismo histórico – e, portanto, também e não menos a fé e a religião em
geral - se encontram no epicentro desta interpelação e desta
pluralidade.
Hoje assistimos à privatização da vida religiosa,
que vai de par com a autonomia do homem moderno , diferente da religiosidade
que regia o mundo teocêntrico medieval.. Cada um compõe sua própria
“receita” religiosa e o campo religioso passa a se assemelhar a um grande
supermercado assim como também a um “lugar de trânsito” onde se entra e se
sai. A modernidade não liquidou com a religião, mas esta ressurge com
nova força e nova forma, não mais institucionalizada como antes, mas sim plural
e multiforme, selvagem e mesmo anárquica, sem condições de voltar a sua
configuração pré-moderna.
O ser humano que viveu a crise da modernidade, ou
que nasceu em meio ao seu clímax, e já nada em águas pós-modernas,
diferentemente do adepto da religião institucional, que adere a uma só religião
e nela permanece; ou mesmo do ateu ou agnóstico, que nega a pertença e a crença
em qualquer religião é como um “peregrino” que caminha por entre os meandros
das diferentes propostas que compõem o campo religioso, não tendo problemas em
passar de uma para outra, ou mesmo de fazer sua própria composição religiosa com
elementos de uma e outra proposta simultaneamente.
A experiência religiosa hoje, portanto, é
constantemente desafiada a inculturar-se incessantemente, ou seja, a entrar
incessantemente e a dizer-se dentro de uma nova matriz cultural.
Nessa tentativa, defronta-se hoje com uma outra face que convive lado a
lado com a da secularidade moderna, geradora da suspeita e do ateísmo,
onde a Transcendência está submetida à constante e incessante crítica da razão
e da lógica iluminista. E esta outra face é a face da pluralidade .
Face esta que, por sua vez, implicará na existência de uma interface: a
das diferentes tentativas do diálogo inter-religioso , da prática
plurireligiosa e da religião do outro como condição de possibilidade de viver
mais profunda e radicalmente a própria fé.
A religião nos
parece ser a mais complexa e conflitada das nossas manifestações culturais.
Mas, não é bem assim.
No conjunto das
medidas tomadas pela organização humana, visando à preservação dos seus grupos,
o sentimento de pertinência do Homem aos deuses levou-o a cultuá-los num
sistema marcado pela rigidez e pela precisão. A intenção de angariar simpatia
desses seres superiores que teriam poder de determinação no destino humano, fez
criar sistemas especiais que permitissem a comunicação do grupo com os deuses,
por intermédio de algum ou alguns dos seus membros, se valendo da simbologia
dos ritos.
Acredita-se que a
preservação desse costume se faz para o bem das gerações passadas, presentes e
futuras. O fenômeno da atividade religiosa se dá em separado das demais
manifestações, em respeito a distancia existente entre o Homem e os seus
criadores. Aliás, a palavra “santo” significa: separado. Portanto, mesmo
cercada de todo o cuidado pela sua importância primordial, a religião é parte integrante
da cultura de um grupo, e não a cultura dele.
Cultura pode ser
compreendida como o modo com que os grupos criam suas soluções às próprias
necessidades e constroem símbolos, tendo em vista a auto-preservação. Suas
crenças, língua, representações, códigos, costumes, instituições, religião,
arte, etc. conferem uma identidade àquele grupo e se relacionam com a produção,
perpetuação e transmissão do saber, à qual todos indistintamente devem se
enquadrar. Um sistema de símbolos compartilhados com que se interpreta a
realidade e dá sentido a existência. Cultura é criação e responde ao dinamismo
humano registrado pela história. Portanto, quando relacionamos ambos os
conceitos ─ religião e cultura ─ primeiro, devemos observá-los separadamente.
Depois que o
judaísmo projetou-se no ambiente religioso mundial, uma grande transformação se
deu nesse contexto. O conjunto das divindades concebidas na Antiguidade,
masculinas e femininas, especialmente, foi expurgado do cenário do misticismo
ocidental devido ao monoteísmo judeu patriarcal. O deus dos judeus era um deus
que reivindicava a criação da Humanidade e se colocava acima de todos os deuses
se dizendo um deus ciumento.
O povo judeu
havia se organizado de um modo diferente, ou seja, vivia debaixo de um rigoroso
sistema político-religioso estruturado sob um arcabouço legal, alegadamente de
origem divina e doado diretamente pelo seu deus ciumento que exigia o severo
cumprimento das suas leis. O judaísmo não admitia a alternância do homem entre
o momento sagrado e o momento profano, como ocorre nas religiões. Nele, o homem
religioso não se aparta do compromisso com o seu deus.
A cultura
judaica, no seu modelo de crença organizada, distingue-se, então, em
importância das outras culturas por estar amarrada firmemente num pacote de
cunho religioso, no qual a autoridade jurídica e religiosa era unificada e
detinha o poder civil. Diferentemente, nas culturas onde a simples religião era
praticada, esta, continuava submetida ao poder civil como as demais
manifestações. Eis a diferença fundamental entre religião e cultura religiosa.
Assim sendo, fica problemático classificar o judaísmo como religião. É uma
cultura religiosa, certamente.
A cultura
religiosa não é amistosa porque a sua natureza não permite. Quando ela se
estabelece, a primeira providência é se livrar das religiões e dos adversários
profanos porque as leis divinas têm validade eterna e exigem zelo. Por causa
disso, os judeus formavam um grupo fechado, refratário a influências, que vivia
nas mesmas cidades dos outros grupos, para os quais o momento sagrado e o
profano eram claramente perceptíveis em suas vidas. Por isso o judaísmo era um
estilo de vida que não se envolvia com os demais.
O modelo judeu
foi copiado pelos gregos em função de uma disputa pela hegemonia cultural no
mundo antigo. Dele surgiu o cristianismo e, do cristianismo, o islamismo. A
conclusão é que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo nunca foram simples
religiões vitoriosas, como se pensa. São culturas religiosas e nasceram de um
austero projeto político-religioso a se executar. Com efeito, é inadequado
pensar-se em suas modernizações, pois o conceito de legalidade que os inspirou
é eterno. As leis divinas mudarão jamais.
As culturas
religiosas podem comportar diversas religiões derivadas de si mesmas, vários
filhotes, por assim dizer. O cristianismo é o seu maior exemplo nesse sentido.
A distinção entre
religião e cultura religiosa se faz necessária, inclusive, porque o saldo
negativo que esta última deixou na história da Humanidade deve ser creditado a
quem de direito.
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